Série Mundo paralelo – Um rio que só quer viver.

Num mundo paralelo onde rios podem falar, um deles conta sobre sua rotina de nascer e renascer todos os dias.

Nasço e começo a crescer no alto de uma serra, um lugar muito lindo. A visão aqui é de tirar o fôlego. Hoje em dia é um dos poucos lugares que me sinto protegido. Teve uma época que não foi assim. Um tempo atrás, arrancaram as árvores ao redor da minha nascente, o sol castigava. Perdi minha capacidade de reter água e os animais me pisoteavam. Minha água foi acabando. Dava época da seca e eu lutava para me manter, mas, infelizmente eu secava. Só mais a frente outras nascentes voltavam a me dar água. Sou grato a elas!

A medida que vou descendo, por cachoeiras e corredeiras, vou ganhando corpo, os afluentes me tornam mais forte, majestoso! As árvores vão me seguindo por meu trajeto, fazem-me sombra e dão comida para os amigos que habitam minhas águas. Sinto-me orgulhoso por ser quem eu sou, pois, distribuo vida por onde passo. Ao longo do caminho começo a fazer novas amizades, minhas águas se tornam mais lentas e eu fico mais profundo. Que maravilha! Todos me respeitam.

Quero dizer, nem todos! Dos animais, os que nem sempre tem uma convivência harmoniosa comigo são os humanos. Claro que existem humanos bons, as minhas nascentes foram recuperadas graças a alguns deles que tiveram piedade de mim. Eles replantaram as árvores ao redor, impediram a entrada dos grande animais e tudo voltou a melhorar. O problema são aqueles que não tem consciência da minha importância. Eles dependem de mim e mesmo assim me causam sofrimento por grande parte do caminho. Tiram parte da minha água e muitas vezes a devolvem suja, mal cheirosa, com substâncias estranhas ao meu corpo. Organismos microscópicos crescem abundantemente em minhas águas para me limpar. São os meus pequenos amigos que vão pouco a pouco me renovando. Mas a alegria dura pouco, alguns quilômetros abaixo e recebo mais dessa água suja e fétida. De onde vem?

Meus pequenos amigos começam freneticamente a se reproduzir, cada vez mais. Precisam me limpar. Eu trago vida, não vão me deixar sujo assim. Essa sujeira é o alimento deles! Mas nesse trecho me sinto fraco, minha cor e até a temperatura mudam. Com tantos pequenos seres em minhas águas o oxigênio acaba. Peixes se vão, outros morrem. Cof, cof, me falta ar…

O rio, sem oxigênio, perde sua força, os peixes, os animaizinhos que precisam do oxigênio se vão ou morrem, uma nova vida passa a habitar o seu leito. Uma vida formada por organismos que não precisam respirar, as chamadas bactérias anaeróbias. Elas tomam conta das águas, tornam o rio com um cheiro horrível e suas águas escuras. Mas algo que parece ruim, não é. Na verdade toda aquela agitação é pra trazer o rio de volta do sono profundo.

… rio, acorde, somos nós, seus amigos peixes!

Sempre que passo por esse trecho é a mesma coisa, acordo com essas vozes me chamando. Eu fico meio zonzo, desmaio por uns bons quilômetros. Mas o que acontece? Isso não acontecia comigo, mas ai vieram eles, os humanos, e tornaram a minha rotina um tanto quanto diferente. Não esqueço a primeira vez, quando acordei e os peixes me contaram que passei por um longo período sem oxigênio em minhas águas. Passei por uma cidade que despejou aquela água suja e fétida em mim numa quantidade tão grande que não fui capaz de suportar. Hoje em dia já acostumei, caio em sono profundo e acordo bem depois. Só tenho medo de que o desmaio dure cada vez mais, por mais tempo.

Nessa região, os humanos não me olham, desprezam a minha condição. Viram as costas para minha existência. Só se preocupam quando estou muito mal cheiroso, quando minhas águas, devido a falta da amiga chuva, se tornam escassas demais para matar a sede deles ou então quando vem muita chuva e eu invado as suas moradias.

Felizmente, depois dessa cidade meus pequenos amigos continuam o trabalho de limpeza. Por sorte não recebo mais essa sujeira e vou me limpando. Novos riozinhos se encontram comigo, me trazem oxigênio e mais organismos pequeninos aparecem para continuar a renovar minhas águas. Sigo por muitos quilômetros e já ninguém percebe que eu sou sujo, a não ser por um pequeno detalhe, alguns objetos estranhos passam a habitar minhas águas e minhas margens, objetos que afundam ou flutuam e esses, as minhas amigas não são capazes de limpar. Uma pena pois o tempo passa e vou me enchendo mais e mais deles. Ouvi um humano dizer que são garrafas, pneus, isopores e muito plástico.

Mas nesses locais, os humanos me valorizam mais, brincam em minhas águas, passeiam, estão mais próximos a mim. Procuro esconder os objetos estranhos nas margens, mata adentro, para aqueles humanos que vem me visitar não me rejeitem.

E assim sigo meu ciclo, vou em frente pelo meu caminho e todo orgulhoso, encontro com um rio maior e minhas águas vão seguindo a partir daí para uma nova jornada, rumo ao oceano! Quem sabe um dia volto a ter boa vida por toda a minha extensão.

Autor: Ernesto Augustus


Temas no texto que podem ser abordados em sala de aula: Poluição das águas, autodepuração, destinação do lixo, desmatamento, recuperação de nascentes, matas ciliares, tratamento de esgotos.

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Abaixo uma coletânea de histórias de um mundo paralelo e a natureza.

As gangues do rio
O Supermercado nas águas
Um dia de fúria
O médico e o rio
O parque e o rio
Diálogo entre humano e peixe I
A saga de uma garrafa pet
A criança e a Serra
O Pequizeiro
O lago
A Mata Ciliar e o Rio

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